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MANGUEIRA 2021 - Sinopse do Enredo: ANGENOR, JOSÉ E LAURINDO

 


MANGUEIRA 2021 - SINOPSE: ANGENOR, JOSÉ E LAURINDO

A poesia que habita a Mangueira foi inventada por um pedreiro de pele preta batizado ANGENOR. Por usar um chapéu maltrapilho, por ironia, os amigos apelidaram Angenor com o título que ainda o acompanha na eternidade: CARTOLA. O príncipe do princípio. O poeta que escolheu as cores da Mangueira. O que cantou as alegrias e as dores do morro. Aquele que ergueu - como quem bate laje, mistura o cimento ou empilha tijolos - duradouro e permanente estado de poesia.

Se a Mangueira chora, ela é uma canção do Cartola que lamenta o peito vazio, o amor que finda e a sentença que o mundo é tal qual um moinho. Se a Mangueira se enche de esperança, ela é um samba do Cartola a anunciar que um dia melhor está por vir. Um convite para correr e ver o céu e o sol de uma nova manhã. Alvorada colorida de beleza. Sem choro, tristeza e dissabor. A lembrança diária de que, ao findar a tempestade, o Sol Nascerá.

Quem lá habita descende desse amálgama de poesia enraizada feito uma roseira. Sim, há roseiras nas favelas. Há jardins e há rosas. Rosas que insistem em nascer. Rosas que brotam dos escombros. Jardim solitário onde, dizem os antigos, ainda está viva a rosa que Cartola cantou, sentenciando quase como queixa que, insistindo em não falar, exala apenas - e ainda hoje - o perfume de sua última enamorada.

Se a poesia de quem guardava e lavava carros ocupa o riso e o pranto de quem mora lá, a voz de outro preto - este, batizado JOSÉ - reside na localidade, habitando-a sem pedir licença. Afirmo, sem medo de errar, que essa voz que paira no ar habita tanto o silêncio das manhãs quanto o burburinho das travessuras dos moleques que brincam quando a tarde cai. Essa voz é a voz de José Bispo Clementino dos Santos. Para a Primeira Estação, o JAMELÃO.

Voz potente como convém aos reis. Reis pretos. Reis, com voz de trovão. Voz de criança que foi engraxate e gritou alto para vender jornais. Voz retinta. De bamba curtido no sereno das batucadas. Voz de pele azeviche. Voz que guarda o visgo saboroso de um jamelão colhido fresco.

Não há como remediar: todo mangueirense que nasce, cresce, sobe e desce aquele morro é acompanhado por essa voz. Essa voz é a voz da própria Mangueira. Ela é uma voz que paira no ar. No claro da manhã e no breu da noite. Uma voz à espreita. Voz quase reza. Voz que ralha e benze os seus.

Não à toa, quando a Mangueira chora, ela é a voz do Jamelão num samba “dor de cotovelo” com letra de Ary e Lupicínio. Triste, ela é o Jamelão em "Folha Morta". Jamelão em "Ela disse-me assim". Quando a Mangueira é faceira, ela é a voz do Jamelão em ritmo de gafieira. Solo de piston. Batuta de Severino Araújo. Jamelão, cabaré e Orquestra Tabajara. Quando se enfeita para descer o morro, ser mais bonita e reinar majestosa enquanto desfila, ela é a voz do Jamelão para um samba do Nelson Sargento, Pelado, Jurandir, Darcy e Hélio Turco.

Sinto saudade da POESIA e da VOZ que habita minha escola como todos os que agora estão distantes do convívio com ela. Fechando os olhos para imaginar revê-la, querendo-a pertinho de mim, ouço a voz do JAMELÃO e a poesia do CARTOLA romperem o silêncio que já se estende em demasia. Agora, gostaria de vê-la dançando diante de mim. Reis e rainhas que dançam. Corpos pretos que dançam. Gente que flutua ao dançar. Gente que parece exibir-se para testemunhar que são a descendência e a extensão de uma realeza.

Imaginando-a dançando e coroada, impossível não crer que todo corpo que habita a Mangueira não herda a dinastia de seu mais famoso bailarino. Bailarino preto. Príncipe da Ralé. Um Obá da favela bordado de paetês. O herdeiro da coroa de Marcelino. Mestre dos que querem ser mestre. O samba que risca o chão. Aquele que, já estando velho, dançava como o menino que atendia pelo nome de LAURINDO.

Impossível não crer que toda uma legião que defende a bandeira que ostenta o verde e o rosa da Primeira Estação não guarda a gana e a sede com a qual o mestre-sala DELEGADO defendeu o pavilhão que cortejou por décadas. Décadas de excelência e notas máximas. Difícil não crer que ele não esteja ao menos em uma gota de sangue de toda criança, menino ou menina, que nasceu ou nascerá naquele morro.

Engana-se quem pensa que os habitantes do Morro de Mangueira morrem sem ter o que deixar como herança, assim como estão enganados aqueles que pensam que, os que lá nascem, estão desprovidos de bens. Quando fizeram a partilha da herança deixada por ANGENOR, JOSÉ & LAURINDO, saibam todos que nenhum morador daquele morro ficou de fora. Eles herdaram um bem preciso e precioso. Lá, nascem ricos daquilo que o dinheiro não compra, e nós, quando privados da arte que brota a granel nos corpos da favela, ficamos mais pobres.

Leandro Vieira

Rio de Janeiro, dezembro de 2020.

DESENVOLVIMENTO, PESQUISA E TEXTO:                LEANDRO VIEIRA.

Mocidade 2021 | Sinopse do Enredo: Batuque ao caçador

 



Carnavalesco e criação: Fábio Ricardo
Sinopse e ideia original: Fábio Fabato
Pesquisa e defesa de enredo: André Luis Junior


Oxóssi, batida de uma flecha só...
Do Orum, Olorum escreveu nas estrelas os segredos do que é essencial. E foi Orunmilá quem os entregou à ventura dos Orixás. Um deles, gravado no arco esticado. No voo da flecha em silêncio. No ofá que aponta o sentido da vida. Para um dia fazer ecoar uma batida única. Na caixa. De guerra. De festa. E se tornar canto ao pé da jurema. Perfume de alecrim. Frescor da alfazema. Confiança no impossível. Afinação pelo inverso nos versos próprios à mata. Cavaleiro regente dos caprichos da pureza. Cadência e equilíbrio de fauna e flora. Batuta que ouriça ou faz calar o naturalmente belo. Trono e tronco da pulsação no interior de tudo. Rito, grito, apito. De mestre. O passo a passo no ritmo preciso. O disparo sem vacilo. Axoxô com milho, amendoim, coco fatiado e melaço na gamela. Oferenda, toque, licença. Pujança preta iorubana. África, axé e agueré. Olu wó kí rí bode.
Diz um Itan que houve festejo em Ifé. Colheita do Inhame. Olofin-Odudua, o rei, foi surpreendido. Do seu altar, viu um dos pássaros de Eleyes pousar sobre o palácio. Desafiadora obra das feiticeiras Iyami Oxorongá. Sombra, peste, cólera se sucederam. O Obá tratou de convocar os Odés para a ofensiva. Guerreiros e suas flechas. Foram cinquenta de Oxotadotá. Todas sem direção. Depois, as quarenta de Oxotogi. Nenhum acerto. Por fim, Oxotogum e vinte tentativas. Mas as asas da praga seguiram abertas.
Eis que o Ifá sinalizou o real caminho: uma lança apenas. E foi Oxotocanxoxô a desferi-la. Instinto de Orixá protetor que atingiu o peito do animal em cheio. Batismo determinante. Fim do mal. Aquele foi o Oxô aclamado: Oxóssi, o Odé, o caçador de uma flecha só. Ofà ofà bèru já. Alegoria fundamental.
Oxóssi, batida de mitos...
O oráculo o fez fruto do simbólico. Em algumas lendas, nascido da própria feiticeira Iyami Apaoká. Jaqueira sagrada. Noutras, filho de Iemanjá e Oxalá. Irmão de Exu, que abriu sua trajetória. E de Ogum, com sua espada de ferro. De afeto. A ensinar sobre a caça. Odé logo aprendeu. Foi ao ataque, para desagrado da mãe. Enfeitiçado por Ossain, encontrou nova moradia na floresta. Abô, banho em deslumbramento. Fez-se provedor dos alimentos. E mò re lè ko lè. Ossain, soberania das ervas e folhas. Oxóssi-Odé, a mira que não descansa. Passaram a viver juntos. Mas Ogum não se conformava. Trouxe o flecheiro de volta para Iemanjá. Ela o recusou.
Sem conseguir o perdão materno, Oxóssi partiu. Destino traçado. Na arma em desenho de Lua Nova empunhada. Mato adentro, atende por Erinlé. Ou Odé Inlé. Grande caçador de elefantes. Que se apaixonou por Oxum banhada de ouro e mel. Erinlé é, ainda, um rio. Correnteza que beija as águas de Oxum. Amor e rivalidade. Desejo e conflito. Do encontro apaixonado e caudaloso, nasceu Logum Edé. Filho metade matagal, metade cachoeira. Homem e mulher. Guerra e espelho. Saiu aos seus.
Oxóssi. Odé. Também chamado Ibualama. Água profunda. Sabedor dos caprichos do submerso. Senhor da prosperidade na ciranda dos Orixás. Aquele que salta a fronteira do impossível: não crê no frio da morte. Dribla Ikú com valentia em suas andanças. Vitorioso na peleja contra o juízo final até mesmo no proibido. Ao flechar a serpente Oxumarê sem permissão superior, foi atingido por feitiço. Mas escapou da passagem. Como sempre. Concessão de Orunmilá.
Oxóssi, batida de luta...
Seguiu adiante. Certeza no improvável. Alvo. Ação. Abate. Longe de titubeios até mesmo quando o trono foi seu. Sim, Odé é rei africano. Rei do Kêtu. O Alakétu. De alteza concedida por Oxum para salvá-lo de outros caçadores. Coroa legitimada pela supremacia do Orum. Mito adorado pelo povo. Oluaiyè a aréré. Kêtu, região de tradição Iorubá sob a árvore sagrada. Kêtu, entreposto de riqueza e comércio. Kêtu, menina dos olhos da cobiça. De Oyó. De Daomé. Da Europa imperialista. Não tardou para o tempo virar sobre o planalto de solo avermelhado. Batalha. O Kêtu sucumbiu ante as tropas daomeanas invasoras. Portal de entrada conquistado. Saga em desalinho.
O culto a Oxóssi foi atingido pela queda do reino. Em fugas. Em massa. Em mortes. Mas o ícone também se espalhou. Memória oral como frasco aberto. Essência do Candomblé solta no ar. Em velas ao mar que transformaram a experiência de mulheres e homens. Sobrevivente no tumbeiro. Irukerê que afasta os maus espíritos. Eco ancestral sem amarras. Desembarque. No Brasil, em Cuba, na mistura efervescente das Américas. Lamento escravo na senzala. Veias abertas.
Oxóssi, batida de sincretismo...
Com os pés aqui, assentou-se no alastramento. Raiz nova em solo que tudo dá. Dono da terra desbravador. Operador da dimensão do encanto. Nagô. Angola também. Cabila. Mutalambô provisor. Arqueiro divino de Zambi. Criador das estrelas. “Que iluminam Oxóssi lá no Juremá”. Preto. Das giras. Mandinga. Macumba. Umbanda. Nação de nações apinhadas. Dorso de aço. Pé de vento. Divindade que dança. Índio. Linhas de caboclo. “De Aruanda”. Pena branca. Jupiassu. Sete flechas. Boiadeiro. Ventania. Dona Jupiara. Sete Encruzilhadas. Das tabas todas consagradas na sua energia.
Orunmilá gravou em Odé a percussão que alforria corpos e almas do Gigante. Ponto riscado. Traje em verde ou azul. Legião de filhos de cabeça feita. Quinta-feira de Ossé. Sincretismo. Salve Jorge na Bahia. O Amado e o Guerreiro. Guardião das noites enluaradas. Casa Branca. Gantois. Ilê Axé Opô Afonjá. A força de Mãe Stella. São Sebastião do Rio de Janeiro. Padroeiro cristão flechado. Falange Tupinambá derrotada. Santo e Orixá. Fusão em dorso nu. Antropofagia simbólica de algozes à beira do cais. Sagrado e profano. Folia.
Oxóssi, batida de festa...
Tribo de quintal sob melodiosa tamarineira. Cacique. De Ramos. Da Uranos. Dos que não cancelam os frutos do tambor. Ubirajara, Ubiracy, Ubirany. Aymoré. No ramal Deodoro, salta em Oswaldo Cruz ou Madureira. Águia e jaqueira sagradas. Apaoká do samba. Tabajara. Paraíso no alto do morro. Arroz-com-couve irmanado ao Boi Vermelho. Como Odé e Ossain em harmonia nos mistérios da mata. Zona Oeste por cartão de identidade.
Agueré depois do apito final na pelada de várzea. Rum, Rumpi, Lé. Ogãs a repercutir a gramática do atabaque. Xirê em torno da sábia Chica. Tia. Mãe. Ifá. De grêmio boleiro a grêmio de terreiro no bairro com nome de padre. Mesa posta por Maria do Siri, receita dos Trindades, toque final de Oliveiras.
Pipa solta que vira estrela de cinco pontas. Herança dos enigmas que Olorum salpicou no céu. Vivinho. André. Macumba. A primeira, a segunda, a terceira. Lavadeira, Galo Velho, Miquimba. Instrumentos calados. Mergulho no abismo. Paradinha. Para o renascer cadenciado no tempo certo. Cuidado feminino no chocalho de platinela, ronco da cuíca de Quirino, mão preta que vibra o couro em sintonia com o peito. A caixa. A síncope. A raiz. Flecha certeira que conduz de volta ao começo e gira a roda da existência. Pioneira.
Guilherme, Coronel Tamarindo, Vintém. Avenida. Brasil, do carnaval, do sonho. Ponto Chic. Faro em movimento. Trem partindo da estação. Caçada batuqueira que desce até o Centro. Para a glória e vitória do axé. “Tupi, cacique, poder geral”. Bira, Jorjão, Coé. Dudu.
Tesouro, aglomeração e abraço sem medo de toda uma gente.
Odé é coisa nossa. Não existe mais quente.
Oxóssi é a bateria da Mocidade Independente.
Okè arò, okè.
Enredo dedicado aos ritmistas de ontem, de hoje e de sempre
que compõem a alma de nossa escola...